segunda-feira, 20 de abril de 2009

Novo prazo abre brecha a anistia a presos por porte de arma

Recém aprovada, a ampliação dos prazos para o recadastramento de armas de fogo, concedida pelo governo federal, abre uma brecha jurídica para os pedidos de "anistia" a presos por posse ilegal de arma. Acusados pelo delito têm se utilizado do argumento de que, enquanto vigorarem os prazos para a entrega voluntária e renovação de registro, a legislação não pode ser aplicada e, portanto, eles não poderão ser punidos. Entre março de 2008 e março deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu pelo menos 20 pedidos de habeas-corpus com esse argumento. Deste total, 11 foram concedidos.

O último prazo para o recadastramento gratuito de armas - que permite a retirada de registro pela internet, sem a cobrança de taxas, e também isenta o proprietário da realização de teste psicológico e prático - havia encerrado em 31 de dezembro de 2008. No entanto, a Lei 11.922/09, sancionada na segunda-feira pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada na terça-feira no Diário Oficial da União, renovou a data para 31 de dezembro de 2009.

O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003) prevê detenção, de um a três anos, além de multa, para a posse irregular de arma de fogo. Em sua primeira versão, o estatuto previa a possibilidade de regularização da arma em até 180 da publicação da medida. No entanto, a medida provisória (MP) 417 ampliou a data limite para dezembro de 2008. Já a entrega voluntária de armas não tem prazo final, pode ser feita de forma permanente.

Advogados defendem soltura
O advogado Antônio Mesquita de Azevedo afirma que o argumento de que a lei não pode ser aplicada enquanto estiver em vigor a medida que facilita o recadastramento tem sido muito utilizado pelas defesas. O próprio advogado conseguiu obter um habeas-corpus no STJ para um cliente acusado de posse ilegal de arma de fogo. Ele diz ainda que os pedidos são facilmente concedidos pelos tribunais superiores. "Enquanto o governo for reiterando os prazos, ninguém pode ser preso por posse de arma."

O jurista Luiz Flávio Gomes, especialista em direito penal, explica que, a partir do momento em que o Estatuto do Desarmamento permite entregar ou legalizar a arma de fogo, dentro de um determinado prazo, a lei perde sua eficácia durante esse período, o que permite a anulação do crime. Ele avalia que a prorrogação até 31 de dezembro de 2009 pode acarretar em uma "corrida" aos tribunais pelos advogados, na tentativa de reverter prisões por posse ilegal de armas que sejam feitas dentro da nova data-limite. "Não há dúvida, e quem recorrer irá ganhar", afirmou.

Foi com esse entendimento que o STJ se mostrou favorável à concessão de 11 habeas-corpus no período de um ano. Um deles, relatado pelo ministro Jorge Mussi, pedia a liberdade de um homem acusado de posse ilegal de arma - objeto que havia sido apreendido na casa dele. O ministro alegou, na sua decisão, que o acusado deveria ser solto, pois não haveria razão para a prisão, que ocorreu durante a vigência do prazo concedido pelo governo para o recadastramento.

Gomes concorda com a posição da Justiça nesses casos. "Enquanto a arma não sai de casa, a decisão é justa." No entanto, diz o jurista, se o acusado cometer um crime com a arma, a situação é diferente. Segundo ele, a tendência é a Justiça não entender como atenuante o fato de o prazo para recadastrar as armas estar em vigor. "O argumento só será considerado se ocorrer posse, com a arma dentro da casa do acusado. No caso de alguém preso por porte de arma, ou seja, fora de casa, na rua, não há anistia", afirmou Gomes. "Neste caso, não vai ter efeito (o argumento). Deixou de ser objeto do crime só possuir a arma, há outros delitos envolvidos."

Controle de armas de fogo
Já no entendimento do diretor executivo do Instituto Sou da Paz, Denis Mizne, essa brecha na lei é grave. A ampliação do prazo para o recadastramento nada mais é, segundo ele, do que uma tentativa de reduzir qualquer possibilidade de colocar a lei em vigor e de desmoralizar o Estatuto do Desarmamento. "A população não foi favorável à proibição total do comércio de armas (no referendo realizado em 2005), mas sempre se mostrou a favor do seu controle", defendeu.

De acordo com Mizne, a regularização é necessária para se fazer um controle das armas de fogo que circulam pelo País. "Hoje em dia existe uma dificuldade para a polícia rastrear, por exemplo, a arma roubada de um cidadão. Quem ganha com isso é o crime, que sabe que, muitas vezes, os donos de armas furtadas não fazem queixa justamente pela situação irregular da arma", disse.

Para o diretor do Sou da Paz, é um grande prejuízo insistir na ampliação do prazo da campanha. "O governo tentou fazer uma grande mobilização nacional pelo desarmamento, mas a verdade é que as armas não foram cadastradas. Agora, em vez de aceitar a irregularidade, tentam desmoralizar uma lei que vem surtindo efeito. Após o Estatuto do Desarmamento, pesquisas apontaram queda de 12% nos homicídios em todo o País¿, disse.

Prorrogação entrou em MP sem relação com armas
A ampliação do prazo de recadastramento das armas está prevista no 20º artigo da Lei 11.922, que partiu da medida provisória (MP) 445, de 2008. A MP trata da dispensa de recolhimento de parte dos dividendos e juros sobre capital próprio pela Caixa Econômica Federal.

O fato de a lei não tratar especificamente do tema armas e ter recebido a inclusão do artigo sem qualquer discussão no Congresso foi classificado como um "absurdo" pelo diretor executivo do Sou da Paz.

"É lamentável que o presidente não tenha vetado este artigo. Foi feito dessa forma porque não existe coragem de levar isso a debate público. Como alguém iria justificar um projeto de lei para algo que já havia sido apresentado como uma lei (o próprio Estatuto), cujo prazo final já havia sido dado? Eles só conseguem aprovar esse tipo de coisa na 'surdina'", afirmou.

Na análise de do jurista Luiz Flávio Gomes, isso pode ser entendido com uma estratégia política do governo de não chamar a atenção para o assunto. Gomes disse, no entanto, que a edição de medidas provisórias que contenham um artigo não-relacionado ao seu assunto principal é uma prática comum. "A medida fala de outro assunto, mas traz nela um artigo de um tema que o governo não quer enfrentar. Se aprovada a medida, o referido artigo também passa a valer", afirmou.

Nestes casos, segundo Gomes, não existe nenhum tipo de recurso que possa impedir a eficácia da medida. "Neste caso (das armas), não é favorável ao governo dizer que está anistiando a arma de fogo, não é simpático para o eleitor. Mas, a partir do momento que foi aprovado, está valendo, não há recurso sobre isso", afirmou Gomes.

A inclusão do artigo relacionado à ampliação do prazo para registro de armas à Lei 11.922 foi feita por uma emenda apresentada à MP 445 pelo deputado Sandro Mabel (PR-GO). A assessoria de imprensa do deputado foi contatada para comentar o assunto, mas não havia retornado até as 15h de sexta-feira.

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